As crianças e a mentira

De pequenino se torce o pepino

Imagine a seguinte situação: uma criança pequena caminha, de forma muito pouco natural, a olhar para o bibe, cujas extremidades enrola com as suas mãos pequeninas. Ao notar o seu comportamento, o pai pergunta-lhe o que tem no bibe e pede-lhe que o mostre. A criança responde que o bibe não tem nada e ordena ao pai que se vá embora. O pai persiste no seu intento e o mistério é revelado: uma nódoa de molho de pickles! Este episódio da vida familiar foi relatado por Charles Darwin a propósito do comportamento de Doddy, o seu filho mais velho, quando tinha apenas dois anos e oito meses.

A formação da mentira e a Teoria da Mente

Pelo relato de Darwin, percebemos que  as crianças começam a mentir desde muito cedo. As mentiras iniciam-se, em norma, a partir dos dois anos e meio, momento em que as crianças compreendem que existem regras e que o seu incumprimento origina uma punição. Nesta fase, a maioria das mentiras tem início com a frase típica «Não fui eu!» e destina-se a evitar ser castigado. São, todavia, mentiras muito pouco elaboradas, dado que as crianças não se apercebem de incongruências óbvias, como dizerem «Não comi o chocolate», com a cara lambuzada com a prova do crime.

 

 

Até aos três anos, as mentiras são muito pouco plausíveis, visto que as crianças consideram que o que elas pensam é o mesmo que todas as outras pessoas pensam, não concebendo a possibilidade de os outros terem crenças diferentes. Para dizer uma mentira convincente é necessário ter em conta aquilo em que o outro acredita e adaptar a linguagem a essa realidade.

É a partir dos quatro anos que tem lugar uma mudança significativa e as mentiras tornam-se mais convincentes, uma vez que as crianças não só são capazes de fingir melhor, como também de encobrir o fingimento com comportamentos e argumentos mais credíveis. Qual é o motivo desta mudança? A resposta está na aquisição da teoria da mente, conceito psicológico que descreve a capacidade para compreender e atribuir estados mentais a si mesmo e aos outros.

 

 

Embora não exista consenso científico, a maioria dos estudos sugere que as crianças adquirem esta capacidade cognitiva por volta dos quatro anos, conseguindo prever e interpretar os comportamentos, intenções e desejos dos outros. A partir do momento em que a teoria da mente irrompe, a criança começa a «ler» o pensamento dos outros e toma consciência da discrepância entre as suas crenças e as dos restantes.

Mas porque mentem as crianças?

As mentiras relatadas nesta fase do desenvolvimento infantil não têm o objetivo de manipular os outros, são apenas formas de evitar a punição e de jogar ao «faz de conta», imaginando e descrevendo cenários alternativos à realidade pessoal e interpessoal. É precisamente o que acontece quando uma criança brinca como os seus bonecos, atribuindo-lhes características específicas e colocando-se alternadamente na pele de cada um.

Apesar de a aquisição da teoria da mente melhorar a capacidade de enganar, as crianças de quatro e cinco anos ainda têm dificuldade em manter de forma coerente a mentira depois da primeira resposta. A capacidade mais sofisticada para sustentar mentiras de forma convincente e plausível perante perguntas adicionais é apelidada «controlo do vazamento semântico» e ocorre entre os seis e os oito anos. É a partir desta idade que as crianças começam a mentir com mais destreza e que a sua capacidade de enganar se torna cada vez mais semelhante à dos adultos.

 

O modelo parental

Os motivos que levam as crianças a mentir não se devem apenas ao evitamento de castigos, mas também derivam da observação e imitação dos comportamentos e atitudes das figuras parentais. De acordo com o psicólogo Robert Feldman, os pais podem ser encarados como «modelos mentirosos» pois, apesar de apregoarem aos filhos a importância da honestidade, enviam frequentemente mensagens ambíguas. Por exemplo, o pai recebe uma chamada de telemarketing e responde que agora não pode falar porque está a meio de uma reunião, desliga a chamada e volta, logo a seguir, a ler descontraidamente o jornal; a mãe elogia o corte de cabelo da vizinha mas, pouco depois, confidencia a uma amiga que aquele penteado é horrendo. A exposição a comportamentos enganadores por parte das figuras de referência conduz as crianças a reproduzirem espontaneamente estas ações.

 

 

Outro tipo de contradição prende-se com a relação entre a honestidade e a educação. Uma criança pode ser castigada por mentir acerca de ter partido um prato e repreendida por dizer à avó que não gostou do presente que ela lhe ofereceu no aniversário. Embora fique revoltada com a segunda situação, pois disse a verdade e é repreendida, começa a perceber que é permissível e encorajado mentir em prol da delicadeza, da simpatia e das convenções sociais. Em suma, compreende que a noção de certo e errado não é estanque e que a mentira é parte integrante da vida em sociedade. Como afirma Goffman, somos todos atores no palco da vida social, assumindo papéis distintos, de acordo com o contexto e o público com que interagimos.

 

BIBLIOGRAFIA

Ariely, D. (2012). The (honest) truth about dishonesty: how we lie to everyone – especially ourselves. New York: HarperCollins

Darwin, C. (1877). A biographical sketch of an infant. Mind, 2(7): 285-294

Ekman, P. (1989). Why kids lie: How parents can encourage truthfulness. New York: Penguin Books.

Feldman, R. (2009). The liar in your life: how lies work and what they tell us about ourselves. London: Virgin Books.

Goffman, E. (1959/1993). A apresentação do eu na vida de todos os dias. Lisboa: Relógio D’Água.

Rakocz, H. (2022). Foundations of theory of mind and its development in early childhood.  Nature Reviews Psychology, 1: 223-235. doi: 10.1038/s44159-022-00037-z

Talwar, V. (2002). The truth about lying: Teaching honesty to children at every age and stage. Washington, DC: American Psychological Association.

Williams, S., Moore, K, Crossman, A. M., & Talwar, V. (2016). The role of executive functions and theory of mind in children’s prosocial lie-telling. Journal of Experimental Child Psychology, 141: 256-66. doi: 10.1016/j.jecp.2015.08.001

 

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